segunda-feira, 16 de junho de 2008

SEMINÁRIO: LEWIS CARROLL

O Racionalismo e o Nonsense em Alice no País das Maravilhas

Por Gabriela Désirée Degen Marothy

Nascido Charles Lutwige Dodgson em 27 de janeiro de 1832, filho de um pastor anglicano, era o terceiro de onze irmãos. Teve uma infância feliz, porém moldada na rígida moralidade vitoriana, nos vilarejos de Daresbury e depois Croft-on-Tees onde seu pai atuou como pastor. Começou a ser educado em casa pelo Rev. Dodgson, que o iniciou em francês, letras clássicas, estudos eclesiásticos e matemática. Aos 13 anos é mandado para o internato Richmond, afim de aprimorar sua educação. Dois anos depois é enviado para Rugby School, considerado o melhor internato inglês da época, com o intuito de se preparar para ingressar em Oxford e, como o pai, estudar matemática e lógica. No século XIX os internatos para meninos eram locais de verdadeira anarquia, onde os alunos mais novos eram freqüentemente submetidos a rituais de deboche e tortura psicológica pelos mais velhos (os chamados “ritos de iniciação”), sem qualquer interferência dos professores. Apesar de nunca ter se queixado disso nas cartas para casa, é muito provável que Carroll tenha passado por esse tipo de humilhação.
Sempre foi uma criança sensível e desde cedo já demonstrava pendores artísticos, como nesse limerick (poema de cinco versos rimados com conteúdo humorístico) que compôs para seus irmãos:

His sister named Lucy O’Finner
Grew constantly thinner and thinner,
The reason was plain,
She slept out in the rain,
And was never allowed any dinner.
[1]

Em 1850 Charles ingressa em Christ Church, Oxford, onde se graduou com honras em matemática no final de 1854. Já no início de 1855, aos 23 anos ele retorna à faculdade como sub-bibliotecário, recebendo no mesmo ano o cargo de professor que exerceria até 1881. Nessa mesma época é apresentado por seu tio Skeffington Lutwidge à fotografia, hobby que exerceria por muitos anos, e que seria, posteriormente, seu principal meio de se aproximar de crianças. Chegou a tal ponto de virtuosismo com a câmera fotografia que foi considerado o melhor fotógrafo de sua época.
No início de 1856 falece o antigo reitor de Christ Church, Thomas Gainsford, que é prontamente substituído por Henry George Liddell, eminente estudioso de grego da época. Nesse mesmo ano Charles trava contato com os filhos mais velhos do reitor, Harry e Lorina, que considera “crianças encantadoras”.
Em 1857 ele já se aproximara de todas as crianças Liddell, especialmente suas “três jovens amigas prediletas”: Lorina, Alice e Edith, a quem ele constantemente fotografa e leva para passeios e piqueniques.
Ao mesmo tempo ele contribui constantemente com poemas adultos para várias publicações populares, dando vazão a seus dotes artísticos. Data deste período a invenção do pseudônimo “Lewis Carroll”, uma latinização e inversão de seu nome, Charles Lutwigde.
Devido à perda de seus diários, têm-se poucas informações sobre sua vida durante os anos de 1858-62. Especula-se que, na verdade, eles tenham sido destruídos por familiares de Charles após sua morte, por conterem informações comprometedoras à sua memória. A maioria dos dados que se tem desse período foram, extraídos de cartas, não só de Carroll, mas também de seus amigos e familiares.
No entanto este foi seu período criativo mais fértil, coincidindo com sua amizade com as meninas Liddell e culminando com a criação dos livros de “Alice”. Durante este período, o relacionamento de Carroll com elas só floresceu e visitas, excursões ao campo e cartas engraçadas eram comuns.
Carroll sempre sustentou que seu relacionamento com crianças era puro e inocente. Embasava esse interesse na visão de poetas do Romantismo Inglês, como Blake e Wordsworth (leituras fundamentais na formação do jovem Charles), os quais glorificavam a infância como o período no qual o espírito, recém saído das mãos de Deus, ainda não tinha sido maculado pelo pecado. Essa visão contrastava fortemente com a vigente na época, na qual toda criança já nasce impura e é dever de seus pais, educadores e da igreja “corrigi-la”.
No entanto não é difícil acreditar que pelo menos subconscientemente Charles fosse assombrado por uma preferência sexual imprópria (no caso meninas impúberes) e, devido à sua formação moral rigorosa, se culpasse e repreendesse por isso. De fato durante a década de 1860-70, seu período mais fértil como escritor e mais frutífero em termos de amizades infantis, seus diários são continuamente bombardeados por súplicas de perdão e promessas de levar uma vida melhor, como se pode notar nesse extrato de 31 de dezembro de 1863:

“Aqui, no encerrar de mais um ano, quanta indiferença, quanto descuido e pecado sou obrigado a relembrar! Ó Deus... levai-me vil e imprestável que sou... Ajudai-me a ser Vosso servo...”[2]
Ou nessa entrada de 6 de marco de 1864:

“Ó Deus... Ajudai-me a viver para o Senhor. Ajudai-me... a lembrar que a hora da morte se aproxima.Pois sou tão fraco, vil e egoísta... Libertai-me das correntes do pecado”[3]
Ao mesmo tempo seu opus literário do período, tanto poemas quanto artigos religiosos abraça a noção de pecado e redenção sustentando que sempre é possível limpar a alma do pecado, alcançando a salvação, se o pecador assim o desejar. Novamente esse é um pensamento que opõe-se ao que vigorava na época: a igreja anglicana do período pregava a danação eterna, sem possibilidade de redenção para aqueles que sucumbiam ao pecado. Ora, Charles era um modelo de retidão moral, como testemunham muitos de seus amigos e familiares; chegando mesmo a se ordenar diácono (um cargo eclesiástico anglicano abaixo do de pastor) em 1861. Externamente, nada em sua pessoa indicava algum tipo de tormento interior, ao contrário ele sempre foi descrito como alguém muito seguro de suas idéias e de sua fé.
Fica a pergunta: seria Carroll de fato aterrorizado por um desejo que ele nunca poderia satisfazer? Ou era de fato apenas vítima de sua forte auto-exigência? A reposta nunca será conhecida: é impossível taxar uma ou outra como sendo verdadeira se não temos os dados necessários para comprová-la (como já foi dito as partes do diário de Carroll que poderiam prover indicações nesse sentido foram perdidas).
Se por um lado nossa visão moderna tende a pender para a questão da sexualidade, especialmente porque já podemos enxergá-la sob uma ótica psicanalítica, que só foi desenvolvida anos depois da morte de Carroll; por outro não há nenhum
indício de que sua conduta tenha sido de algum modo imprópria. De fato nenhuma de suas jovens amigas se lembra dele sendo algo que não extremamente afetuoso e cordial: um verdadeiro amigo.
Seja como for, a conjectura mais aceita atualmente é de que essa possível confusão interior, aliada ao seu extraordinário dom literário e talento para a matemática que o levaram a escrever “As Aventuras de Alice no País das Maravilhas” e posteriormente “Através do Espelho, e o que Alice encontrou Lá”. Durante uma tarde de verão de 1862 Charles junto com seu amigo e também professor Robinson Duckworth levaram as três meninas Liddell, então com 13, 10 e 8 anos para um piquenique e excursão de barco pelo rio que circunda Oxford. Enquanto remava rio acima Charles recebe o pedido das Liddell para que lhes conte uma história (algo que ele já tinha feito inúmeras vezes antes). Ele então começa a relatar um conto que depois se transformaria em “Alice”, mas que momentaneamente ele chamou de “As Aventuras de Alice sob a Terra”. Apesar de já ter-lhes inventado histórias varias vezes, esta deve ter sido realmente especial, pois Alice pediu que Carroll a escrevesse para ela. Ele de fato a escreveu, mas no momento em que a presenteou com um manuscrito encadernado no seu aniversario de 12 anos, em 1864, seu relacionamento com as meninas já era bem diferente.
Novamente não se sabe o que ocorreu, pois as páginas referentes a esse assunto foram cortadas do diário de Charles, mas em meados de julho de 1863 Carroll e os Liddell terminaram seu relacionamento. Especula-se que o rompimento tenha partido da mãe de Alice, também chamada Lorina, que supostamente percebeu em Carroll um interesse impróprio por sua segunda filha. Depois desse evento Charles só volta a encontrar as meninas em cerimônias formais de Christ Church e outros eventos acadêmicos, mantendo com elas uma cordialidade distante. Elas praticamente deixam de ser mencionadas em seu diário até o inicio da década de 1870 quando a sra. Liddell leva Lorina e Alice, já moças de vinte anos, para serem fotografadas por Charles. Carroll manteve relacionamentos com meninas durante toda sua vida, mas o fantasma de Alice nunca deixou de assombrá-lo.
Apesar de não mais se relacionarem, Carroll e os Liddell ainda possuíam muitos amigos em comum, que após verem o manuscrito de “As Aventuras de Alice sob a Terra” na casa dos Liddell, sugeriram entusiasticamente que Carroll o publicasse. Então, após revisar e ampliar o texto original, que foi rebatizado como “As Aventuras de Alice no País das Maravilhas”, Carroll publica sua fábula nonsense em 1865.
O livro foi um sucesso imediato. Ao contrario das publicações infantis da época que visavam à educação moral e religiosa da criança e conseqüentemente traziam um tom sério, a obra de Carroll prima pelo humor e pela leveza do tema.
Seis anos depois, incentivado por seu editor e pelo estrondoso sucesso da obra, Charles publica uma continuação, chamada “Através do Espelho, e o que Alice Encontrou Lá”, desta vez tendo como tema o encontro da menina com as peças do jogo de xadrez e rememorando a visita do príncipe de Gales a Oxford alguns anos antes, e do qual ele e as três irmãs participaram ativamente.
Há muitas interpretações possíveis para os dois livros, muitas vezes contraditórias, levando em conta a rica vida interior de Carroll, seu relacionamento por vezes conflituoso com as crenças de sua época e com as meninas. Sabe-se que os livros de “Alice”, em particular “País das Maravilhas” formam uma obra que foi escrita visando agradar uma leitora em particular (Alice Liddell), e cujas referencias foram todas tiradas de lugares e pessoas que ambos conheciam. Há uma tendência a crer que, apesar de o exterior da heroína representar Alice Liddell ela foi imbuída da psique do próprio Charles Dodgson. Sob esta luz, a batalha que ela trava por todo o livro, visando sua sobrevivência num mundo hostil no qual tem se valer apenas dos próprios recursos, podem ser considerados metáforas da própria luta travada por Carroll não só para controlar seus demônios, mas também para ser aceito numa sociedade com a qual vivia em constante conflito, tanto por suas crenças quanto pela sensação de outsider que experimentou durante toda a vida: sua incrível timidez (que magicamente sumia se ele se encontrasse na companhia de uma linda menina) e a gagueira congênita da qual nunca consegui se curar o mantiveram sempre à margem da sociedade.
Alguns também vêem em “Alice” uma crítica ao tratamento dispensado à criança na era Vitoriana: não só a visão deturpada que os vitorianos tinham da criança, como um ser já maculado pelo pecado e principalmente pouco dotado de inteligência e capacidade de compreensão, como também a comum negligencia dos pais no tratamento dos filhos, na maioria das vezes relegados a cômodos específicos na casa e ao cuidado de babás e enfermeiras.
Independentemente disso fica clara a influencia da vida de Lewis Carroll, tanto daquela que pode ser mensurada e compreendida como daquela sobre a qual se pode somente especular na criação dos livros que, mais de 100 anos após sua publicação continuam sendo admirados em todo o mundo.

Bibliografia:
  • COHEN, Morton N. Lewis Carroll, uma Biografia. Tradução Raffaella de Filippis. Ed. Record, Rio de Janeiro, 1998.
  • CARROLL, Lewis e GARDNER, Martin. The Annotated Alice. Penguin Press, Londres. 2001.

Sites:
http://lewiscarrollsociety.org.uk/ - Web site da Sociedade Lewis Carroll, dedicada à promoção da vida e obra de Charles L. Dodgson.


[1] Sua irmã de nome Lucy Serafina/ Ia ficando cada vez mais fina/ Porque dormia sem lençol/ Debaixo de chuva ou sol/ E porque nunca lhe davam vitaminas. Trad. José Paulo Paes
[2] COHEN, Morton N. Lewis Carroll, uma Biografia. Tradução Raffaella de Filippis. Ed. Record, Rio de Janeiro, 1998. p. 242.
[3] Idem

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